Sagrada, Héstia recebia cultos com a colaboração das deusas vestais ou deusas virginais. Ousou dispensar casório com bons partidos como Apolo e Netuno, privando-se do contato com o masculino, mantendo-se íntegra e protetora. A deusa, teria preferido a inteireza, em nome da casa e a família, cuidando dos rituais da vida íntima. Qualquer semelhança com uma tia solteirona, coroa, bacana e protetora não seria mera coincidência.
No céu, Héstia ou Vesta é um asteroide. Em nossos mapas (por casas astrológicas) pode sinalizar a luz de uma vela que brilha distante, indicando que é para lá que se deve ir em tempos de tormenta, apontando um alento, uma casa interior, uma morada de alma, um lugar de luz e paz. Héstia é a deusa que simboliza o focar na chama interior, em si mesmo, na própria vida, distante do mundo exterior, para que consigamos manter nossa chama sagrada acesa, íntegra, sempre pura e viva. Refletir sobre ela e sua relação com nossa vida nos possibilita um estado hipnótico muito semelhante ao do devaneio diante do fogo, que queima, purifica, expurga o que é sombrio. Olhar pra o fogo de Vesta, nos leva de novo para dentro de nós mesmos. Um lugar simbólico de calor, proteção e transformação.
Sobre ela o pensador Leonardo Boff falou com propriedade. E ajudou a nós astrólogos e analistas junguianos a disseminar sua cultura. O texto que se segue abaixo merece leitura por que Boff além de falar com conhecimento, é autoridade nos assuntos da transcendência e escreve muitíssimo bem. Obrigada Boff!
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Vesta, a deusa do lar e o fogo sagrado. Ilustração de Venceslaus Hollar |
Como tratas a Héstia: o teu coração, o teu lar e a Terra como Casa comum?
Atualmente há toda uma nova forma de interpretar os velhos mitos gregos e de outros povos. Ao invés de considerar os deuses e deusas como entidades subsistentes, agora cresce a hermenêutica, especialmente, após os estudos do psicanalista C.G. Jung e seus discípulos J. Hillman, E. Neumann, G. Paris e outros, de que se trata de arquétipos, vale dizer, de ancestrais forças psíquicas que nos habitam e movem nossas vidas. Elas irrompem de forma tão vigorosa que os conceitos abstratos não conseguem expressá-las mas que o são mediante relatos mitológicos. Neste sentido o politeísmo não significa a pluralidade de divindades, mas de energias que vibram na nossa psique.
Um desses mitos que contem um significado profundo e atual é aquele da deusa Héstia. Segundo o mito, ela é filha de Cronos (o deus do tempo e da idade de ouro) e de Reia, a grande mãe, geradora de todos os seres. Héstia representa nosso centro pessoal, o centro do lar e o centro da Terra, nossa Casa comum. É virgem, não por desprezar a companhia do homem, mas para poder, com mais liberdade, cuidar de todos os que se encontram no lar. Mesmo assim ela sempre vem acompanhada por Hermes, o deus da comunicação (donde vem hermenêutica) e das viagens. Não são marido e mulher. São autônomos mas sempre reciprocamente vinculados.
Eles representam duas facetas de cada pessoa humana que é portadora simultaneamente do animus (princípio masculino, Hermes) e da anima (princípio feminino, Héstia).
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Apollo tenta convencer Héstia a se casar com ele. Pintura de François-Andres Vincent, século XVIII. |
Héstia significa em grego a lareira com fogo aceso: isso era entendido existencialmente como a harmonia e o ânimo do coração. Tarefa diuturna e sempre continuada é manter sob controle dos demônios interiores e dar o mais possível espaço aos anjos bons.
Héstia era também o lar com o fogo aceso como aquele lugar ao redor do qual todos se agrupam para se aquecerem e conviverem. Portanto, é o coração da casa, o lugar da intimidade familiar, longe do tumulto da rua. Héstia protege, dá segurança e aconchego. Além disso, a ela cabe a ordem da casa e detém a chave da despensa para que sempre esteja bem fornida para familiares e hóspedes.
Nas cidades gregas e romanas mantinha-se sempre um fogo acesso, para expressar a presença protetora de Héstia (a Vesta dos romanos). Se o fogo se apagasse, era presságio de alguma desgraça. Também não se começava a refeição sem fazer um brinde à Héstia: “para Héstia” ou “para Vesta”.
Héstia, concretamente, significava também aquele canto para onde alguém se recolhe para estar só, ler seu jornal ou um livro e fazer a sua meditação. Cada um tem o seu “lugarzinho” ou sua cadeira preferida. Para saber onde se encontra a nossa Héstia devemos nos perguntar quando estamos fora de casa: ”qual é a imagem que melhor lembra o nosso canto, onde Héstia se oculta? Aí está o centro existencial da casa. Sem a Héstia a casa se transforma num dormitório ou numa espécie de pensão gratuita, sem vida. Com Hestia há afeição, bem-estar e o sentimento de estar “finalmente em casa”. Ela era tida como uma a aranha, por tecer teias que unem a todos e o centro que recolhe e elabora todas as informações.
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Vesta por Jean Raoux |
Héstia era por todos venerada e no Olimpo a primeira a ser reverenciada. Júpitér sempre defendeu sua virgindade contra o assédio sexual de alguns deuses mais assanhados.
A nossa cultura patriarcal e a masculinização das relações sociais tornaram Héstia grandemente enfraquecida. As mulheres fizeram bem em sair de casa, desenvolver sua dimensão de animus (capacidade de organizar e dirigir). Mas tiveram que sacrificar, em parte, a sua dimensão de Héstia. Nelas se mostrou a dimensão de Hermes que se comunica e se articula. Levaram para o mundo do trabalho as virtudes principais do feminino: o espírito de cooperação e o cuidado que tornaram as relações menos rígidas. Mas chega o momento de voltar para casa e de resgatar a Héstia.
Ai da casa desleixada e desordenada! Aí emerge a vontade de que Héstia se faça presente para garantir a atmosfera boa, íntima e familiar. Esta não é apenas tarefa da mulher mas também do homem. Por isso em todo homem e em toda a mulher deve se equilibrar o momento de Hermes, estar fora de casa para trabalhar com o momento de Héstia, de voltar ao centro e ter o seu refúgio e aconchego.
Hoje, por mais feministas que sejam as mulheres, elas estão resgatando mais e mais esta fina dosagem vital.
Héstia não significava somente a lareira acesa do lar ou da cidade. Também designava o centro da Terra onde está o fogo primordial. Hoje não é mais crença mas dado científico. No centro há ferro incandescente. Logicamente, quando se estabeleceu o heliocentrismo e se invalidou o geocentrismo, houve uma abalo emocional para o pensamento de Héstia, a Casa Comum. Mas lentamente ele foi reconquistado. Se a Terra não é mais o centro físico do universo, ela continua sendo o centro psicológico e emocional. Aqui vivemos, nos alegramos, sofremos e morremos. Mesmo indo aos espaços exteriores, os astronautas sempre revelavam saudades da Mãe Terra, onde tudo o que é significativo e sagrado está lá.
Hoje temos que resgatar a Héstia, dar centralidade à razão cordial, torná-la a protetora da Casa Comume manter seu fogo vivo e conferir-lhe sustentabilidade. Não estamos rendendo-lhe as honras que merece, por isso ela nos envia seus lamentos com o aquecimento global e as calamidades naturais. Não devemos rebaixar Héstia como mero repositório de recursos mas como a Casa Comum que deve ser bem cuidada para que continue a ser nosso Lar aconchegante e benfazejo.
Leonardo Boff é articulista do JB on line e escritor e escreveu o livro Ecologoa, Ciência e Espiritualidade,Mar de Ideias, Rio 2015.