quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

Héstia ou Vesta: a deusa do fogo interior

A pintura de John Weguelin é uma possível interpretação pictórica para Héstia ou Vesta, a deusa do fogo sagrado, do lar, da família, o fogo que aquece as almas e aponta os caminhos do coração. Nesta pintura, Weguelin a colocou num cenário egípcio, como se ela fosse ainda anterior à Héstia grega.
No fim do túnel há uma luz. Em meio a confusões, crises de identidade, antagonismos, fraquezas de caráter e espírito, confusões externas, escuridão, sombras, trevas pessoais ou mundiais há uma chama que ilumina, arde e pode indicar a saída para muitas questões. Essa chama é representada por Héstia, a deusa do fogo sagrado na Grécia antiga. Em Roma, conhecida por Vesta, ela foi uma deusa do mundo privado, da casa, do lar. Em toda a morada grega havia no centro o fogo que nunca se apagava. Ela também estava presente na chama ostentada em local público e nos jogos olímpicos.
Sagrada, Héstia recebia cultos com a colaboração das deusas vestais ou deusas virginais. Ousou dispensar casório com bons partidos como Apolo e Netuno, privando-se do contato com o masculino, mantendo-se íntegra e protetora. A deusa, teria preferido a inteireza, em nome da casa e a família, cuidando dos rituais da vida íntima. Qualquer semelhança com uma tia solteirona, coroa, bacana e protetora não seria mera coincidência.
O fogo do lar, que aquece e reúne a família é coisa de Héstia. Alguns minutos diante dele estamos quase que hipnotizados, introspectivos, pensando nas coisas da vida. Ação sugerida pela deusa que assim nos levava ao mundo interno, ao ying, ao feminino em nós, homens ou mulheres. Como uma luz, um foco de atenção, nos leva ao que precisa ser visto. Na astrologia simboliza o que precisa ser purificado.
No céu,  Héstia ou Vesta é um asteroide. Em nossos mapas (por casas astrológicas) pode sinalizar a luz de uma vela que brilha distante, indicando que é para lá que se deve ir em tempos de tormenta, apontando um alento, uma casa interior, uma morada de alma, um lugar de luz e paz. Héstia é a deusa que simboliza o focar na chama interior, em si mesmo, na própria vida, distante do mundo exterior, para que consigamos manter nossa chama sagrada acesa, íntegra, sempre pura e viva. Refletir sobre ela e sua relação com nossa vida nos possibilita um estado hipnótico muito semelhante ao do devaneio diante do fogo, que queima, purifica, expurga o que é sombrio. Olhar pra o fogo de Vesta, nos leva de novo para dentro de nós mesmos. Um lugar simbólico de calor, proteção e transformação.
Sobre ela o pensador Leonardo Boff falou com propriedade. E ajudou a nós astrólogos e analistas junguianos a disseminar sua cultura. O texto que se segue abaixo merece leitura por que Boff além de falar com conhecimento, é autoridade nos assuntos da transcendência e escreve muitíssimo bem. Obrigada Boff! 
Vesta, a deusa do lar e o fogo sagrado. Ilustração de Venceslaus Hollar



Como tratas a Héstia: o teu coração, o teu lar e a Terra como Casa comum?
Atualmente há toda uma nova forma de interpretar os velhos mitos gregos e de outros povos. Ao invés de considerar os deuses e deusas como entidades subsistentes, agora cresce a hermenêutica, especialmente, após os estudos do psicanalista C.G. Jung e seus discípulos J. Hillman, E. Neumann, G. Paris e outros, de que se trata de arquétipos, vale dizer, de ancestrais forças psíquicas que nos habitam e movem nossas vidas. Elas irrompem de forma tão vigorosa que os conceitos abstratos não conseguem expressá-las mas que o são mediante relatos mitológicos. Neste sentido o politeísmo não significa a pluralidade de divindades, mas de energias que vibram na nossa psique.
Um desses mitos que contem um significado profundo e atual é aquele da deusa Héstia. Segundo o mito, ela é filha de Cronos (o deus do tempo e da idade de ouro) e de Reia, a grande mãe, geradora de todos os seres. Héstia representa nosso centro pessoal, o centro do lar e o centro da Terra, nossa Casa comum. É virgem, não por desprezar a companhia do homem, mas para poder, com mais liberdade, cuidar de todos os que se encontram no lar. Mesmo assim ela sempre vem acompanhada por Hermes, o deus da comunicação (donde vem hermenêutica) e das viagens. Não são marido e mulher. São autônomos mas sempre reciprocamente vinculados.
Eles representam duas facetas de cada pessoa humana que é portadora simultaneamente do animus (princípio masculino, Hermes) e da anima (princípio feminino, Héstia).
Apollo tenta convencer Héstia a se casar com ele.  Pintura de François-Andres Vincent, século XVIII.
Héstia significa em grego a lareira com fogo aceso: isso era entendido existencialmente como a harmonia e o ânimo do coração. Tarefa diuturna e sempre continuada é manter sob controle dos demônios interiores e dar o mais possível espaço aos anjos bons.
Héstia era também  o lar com o fogo aceso como aquele lugar ao redor do qual todos se agrupam para se aquecerem e conviverem. Portanto, é o coração da casa, o lugar da intimidade familiar, longe do tumulto da rua. Héstia protege, dá segurança e aconchego. Além disso, a ela cabe a ordem da casa e detém a chave da despensa para que sempre esteja bem fornida para familiares e hóspedes.
Nas cidades gregas e romanas mantinha-se sempre um fogo acesso, para expressar a presença protetora de Héstia (a Vesta dos romanos). Se o fogo se apagasse, era presságio de alguma desgraça. Também não se começava a refeição sem fazer um brinde à Héstia: “para Héstia” ou “para Vesta”.
Héstia, concretamente, significava também aquele canto para onde alguém se recolhe para estar só, ler seu jornal ou um livro e fazer a sua meditação. Cada um tem o seu “lugarzinho” ou sua cadeira preferida. Para saber onde se encontra a nossa Héstia devemos nos perguntar quando estamos fora de casa: ”qual é a imagem que melhor lembra o nosso canto, onde Héstia se oculta? Aí está o centro existencial da casa. Sem a Héstia a casa se transforma num dormitório ou numa espécie de pensão gratuita, sem vida. Com Hestia há afeição, bem-estar e o sentimento de estar “finalmente em casa”. Ela era tida como uma a aranha, por tecer teias que unem a todos  e o centro que recolhe e elabora todas   as informações.
Vesta por Jean Raoux 

Héstia era por todos venerada e no Olimpo a primeira a ser reverenciada. Júpitér sempre defendeu sua virgindade contra o assédio sexual de alguns deuses mais assanhados.
A nossa cultura patriarcal e a masculinização das relações sociais tornaram Héstia grandemente enfraquecida. As mulheres fizeram bem em sair de casa, desenvolver sua dimensão de animus (capacidade de organizar e dirigir). Mas tiveram que sacrificar, em parte, a sua dimensão de Héstia. Nelas se mostrou a dimensão de Hermes que se comunica e se articula. Levaram para o mundo do trabalho as virtudes principais do feminino: o espírito de cooperação e o cuidado que tornaram as relações menos rígidas. Mas chega o momento de voltar para casa e de resgatar a Héstia.
Ai da casa desleixada e desordenada! Aí emerge a vontade de que Héstia se faça presente para garantir a atmosfera boa, íntima e familiar. Esta não é apenas tarefa da mulher mas também do homem. Por isso em todo homem e em toda a mulher deve se equilibrar o momento de Hermes, estar fora de casa para trabalhar com o momento de Héstia, de voltar ao centro e ter o seu refúgio e aconchego.
Hoje, por mais feministas que sejam as mulheres, elas estão resgatando mais e mais esta fina dosagem vital.
Héstia não significava somente a lareira acesa do lar ou da cidade. Também designava o centro da Terra onde está o fogo primordial. Hoje não é mais crença mas dado científico. No centro há ferro incandescente. Logicamente, quando se estabeleceu o heliocentrismo e se invalidou o geocentrismo, houve uma abalo emocional para o pensamento de Héstia, a Casa Comum. Mas lentamente ele foi reconquistado. Se a Terra não é mais o centro físico do universo, ela continua sendo o centro psicológico e emocional. Aqui vivemos, nos alegramos, sofremos e morremos. Mesmo indo aos espaços exteriores, os astronautas sempre revelavam saudades da Mãe Terra, onde tudo o que é significativo e sagrado está lá.
Hoje temos que resgatar a Héstia, dar centralidade à razão cordial, torná-la a protetora da Casa Comume  manter seu fogo vivo e conferir-lhe sustentabilidade. Não estamos rendendo-lhe as honras que merece, por isso ela nos envia seus lamentos com o aquecimento global e as calamidades naturais. Não devemos rebaixar Héstia como mero repositório de recursos mas como a Casa Comum que deve ser bem cuidada para que continue a ser nosso Lar aconchegante e benfazejo.
Leonardo Boff é articulista do JB on line e escritor e escreveu o livro Ecologoa, Ciência e Espiritualidade,Mar de Ideias, Rio 2015.

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